A janela de Carlos

Depois de ouvir um barulho de trovão, levantou da cama, calçou seus chinelos e foi em direção ao seu lugar favorito do apartamento: a cadeira que sempre ficava próxima à janela. As primeiras gotas de chuva caíam, mas não entravam no apartamento. Olhando para a rua, viu as pessoas começarem a abrir seus guarda-chuvas. Sozinho desde que ficou viúvo, sua fobia social o fazia ver as pessoas apenas à distância. Aquela janela era os únicos olhos que tinha para ver o mundo.

As lembranças de Elizabeth não o faziam tão mal quanto antes. Na verdade, depois de um tempo Carlos aprendeu a pensar nos bons momentos e a sorrir sozinho ao se lembrar deles. Viúvo há quase 10 anos, suas companhias diárias eram as memórias que tinha da mulher, um peixe e a cadeira de madeira, colocada próxima à janela da sala. O casamento só não durou mais que os anos dedicados à profissão. Perdeu até as contas de quantos estudantes ajudou a formar enquanto foi professor. Mas, apesar do amor ao trabalho, o que o aposentado mais sentia falta era de Elizabeth.

Em seu pequeno apartamento, grande para o vazio que restou depois da partida dela, Carlos passava a maior parte do tempo na janela. Além da saudade, cultivava também três cactos e cuidava de Simão, o seu peixe. Nem televisão tinha mais, a doou ao porteiro do prédio que sempre o ajudava com pequenos reparos no apartamento e com as encomendas que fazia. Todas as informações que chegavam a ele eram provenientes do informativo mensal que o condomínio disponibilizava e do que ele via pela janela de seu apartamento. Esticando o pescoço em direção à rua, seus olhos, por trás dos óculos fundo de garrafa, conseguiam enxergar o perímetro entre o número 1275 e 1893. O seu mundo se resumia àquilo.

Do terceiro andar não era possível ter uma vista panorâmica da cidade, mas, acompanhando as janelas dos prédios do outro lado da rua, o vai e vem dos carros e das pessoas e o movimento no ponto de ônibus próximo ao prédio, conseguia ver o que acontecia no resto dela. Da janela de seu apartamento viu a ascensão da construção civil, a verticalização dos centros urbanos e o aumento da população; viu a frota de carros crescer e o espaço nas ruas diminuir; viu a moda mudar uma, duas, várias vezes; viu os smartfones se popularizarem e a cordialidade ser extinta; viu as pessoas se aceitarem, mas também testemunhou intolerância; viu o país omitir educação e, assim, exibir altos índices de violência. Depois de anos observando a vida pela janela, viu o amor perder espaço para o dinheiro, ego e para a maldade…

Há tempos não descia as escadas do edifício. Só de pensar na possibilidade sentia-se em pânico. O porteiro do prédio, como um favor, se encarregava de fazer as compras para ele, pois Carlos tinha receio das ruas. Apesar de também ver coisas boas pela janela, seus medos em relação à violência e a solidão da viuvez fizeram dele um prisioneiro. Sem filhos, Carlos não via necessidade de ter um telefone ou um computador em casa. Vivia isolado da tecnologia, ficando a cargo do porteiro dar informações a seu respeito quando raramente seus parentes, distantes em todos os sentidos, telefonavam para o prédio.

Embora não tivesse filhos para deixar o seu legado, realizou-se instruindo e formando profissionais de diversas áreas. Realizou-se também sentimentalmente, dando amor – e recebendo na mesma medida – àquela que sempre foi a mulher de sua vida. Mas, além do medo de morrer, tinha receio também de partir sem deixar sua ínfima contribuição a qualquer um que entrasse em seu apartamento depois de sua partida. Após anos de observação, julgava importante deixar a sua visão sobre o mundo que assistia pela janela. Por isso, na parede de sua sala, com um pedaço de giz retocava diariamente aquilo que, para ele, representava o mundo: “A verdade é que em relação ao amor muito se fala sobre o substantivo, mas pouco se faz pelo verbo. Amar tornou-se obsoleto!”

Três batidas na porta. Era o código combinado com o porteiro. entreabriu a porta, recebeu suas encomendas e o agradeceu com uma pequena gorjeta. Carlos já havia dado muitas coisas ao homem, que sempre foi solícito. Fecha a porta e volta para o seu universo onde, estampada na parede, uma frase representava não somente a sua visão do mundo que acompanhava pela janela, mas também a cruel realidade dele como um todo.

Guilherme Givisiez

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