Eu não morri por Maria

Dentro de um ônibus quase vazio, à sua frente apenas o trocador e o motorista. Nas poltronas de trás poucos passageiros. Assentado próximo a uma das janelas, nem se dava conta de que as suas pernas estavam balançando copiosamente e seus dedos da mão direita batucavam o assento da poltrona vazia à sua frente. Embora estivesse ali, todos os seus pensamentos estavam focados em tentar entender onde havia errado.

A mensagem de texto que recebeu na noite anterior o deixou inquieto. Depois de meses de muita intensidade e de se doar tanto, não fazia sentido que tudo terminasse daquela forma, sem sequer uma conversa olho no olho. Embora não fosse inédito perder alguém sem um motivo relevante, às vezes até mesmo sem uma explicação, aquela era a primeira vez que o doía tanto. A frase: “Perdão, mas acho que nos precipitamos” não saía da sua mente. E, embora tivesse se entregado totalmente à outra pessoa, tentava encontrar em si os erros que a fez querer ir embora. Teria se entregado demais ou se doado de menos? Até a camisa xadrez que usava, único presente que ganhou da pessoa, se tornou um gatilho.

Enquanto pensava, um senhor entra no ônibus. O homem de uns setenta e poucos anos parecia ter se arrumado para uma consulta médica ou para uma perícia no INSS. Portava, além de um olhar triste, uma sacola pequena e um guarda-chuva em uma das mãos. Ele passou a roleta, olhou o rapaz e se assentou ao lado dele. Surpreso, ele se sente extremamente incomodado. Em silêncio, questiona o que motivaria aquele velho a escolher se assentar ali, com tantas poltronas vazias naquele ônibus. Seus pensamentos são interrompidos quando o homem, com um paletó cheirando à naftalina, pergunta:

_ Você ama alguém, meu filho?

O rapaz estranha a pergunta e pensa: “era só o que faltava! Logo hoje um velho cheirando à naftalina e com necessidade de dialogar sentar do meu lado.” Após alguns segundos, responde:

_ Sim.

Então o senhor diz:

_ Eu também amava: Maria.

Ele tira uma foto 3×4 antiga da sacola que carregava e a entrega ao rapaz. Na foto, o rosto de uma mulher.

_ Eu sei que ela me amava. Eu sentia. _ Diz o senhor, que continua: _ Por mais que, às vezes, nós discutíssemos e fossemos dormir de costas um para o outro, ela me amava. Eu via o amor em seu olhar de alegria quando eu chegava mais cedo do trabalho e, ainda com o avental, ela vinha me receber. Via o amor às quartas-feiras, quando ela não assistia à novela, pois sabia que eu assistiria ao jogo, ela sempre dormia no sofá antes do segundo tempo. O seu amor estava presente aos domingos quando, mesmo tendo todas as panelas sobre a mesa, ela destampava uma a uma para me mostrar tudo o que havia preparado e, sempre que cozinhava frango, colocava as duas coxas no meu prato. Ela também gostava da coxa, mas, por saber que era a parte que eu mais gostava, sempre me servia as duas. Em pequenos gestos ela demonstrava o seu amor diariamente, abrindo mão das suas vontades e dos seus desejos para que eu pudesse satisfazer aos meus.

_ E onde ela está? _ Questiona o rapaz.

O senhor pega a foto da mão dele e, enquanto olha para o retrato, responde:

_ O enterro foi ontem. É o fim de todos nós, não é, menino? Parada cardíaca. Nem teve tempo de chegar ao hospital.

O rapaz, diante da magnitude da perda do senhor, se esquece dos próprios problemas e compadece:

_ Sinto muito!

O viúvo responde:

_ Não sinta! Quem deve sentir muito sou eu. Eu via o amor dela todos os dias, mas quando Maria viu o meu amor? Quando eu abri mão de algo por ela? _ Ele guarda a fotografia na sacola e continua a falar: _ eu daria o pouco resto de vida que tenho só por mais um dia com ela. Um dia não, algumas horas… Só o tempo suficiente para mostrar a ela que não era o meu emprego, não era o futebol, não eram as minhas economias. A coisa mais importante da minha vida era ela. Não sei se ela partiu com essa certeza. Digo com muita tristeza: eu sabia que ela gostava de novela, mas nunca deixei de assistir a uma partida de futebol por isso. Ela nunca me culpou, filho, por eu não realizar o maior sonho da vida dela. Maria sempre quis ser mãe, mas Deus não permitiu que eu fosse pai. Eu sim, sempre a culpei. Sempre me impus quando ela falava sobre adoção. Hoje eu não tenho ninguém. Eu fui um tolo todos esses anos…

Emocionado, o senhor tira um lenço branco do bolso do paletó e enxuga o rosto. O rapaz não sabia o que dizer, nem o que fazer. Provavelmente aquele lenço havia sido lavado pela mulher, quem colocou a naftalina que originava o cheiro no paletó azul marinho tinha sido ela. É certo que a casa tenha ficado arrumada e as roupas limpas, mas o que isso significava para aquele homem depois que chegou sozinho em casa? Uma lágrima escorre no rosto do rapaz. Com a cabeça abaixada, ainda ouve o senhor dizer:

_ Filho, quando você amar alguém a ponto de dar a sua vida pela pessoa, não espere essa oportunidade chegar. Pode ser que, assim como fez a mim, a vida não te dê tempo para demonstrar isso. Quando amar alguém a ponto de perder a vida pela pessoa, morra um pouquinho a cada dia. Abra mão de algumas coisas pela felicidade do outro e valorize quando fizerem o mesmo por você. Morrer por alguém não significa perder a vida pela pessoa, mas sim, em pequenos atos, se doar um pouco diariamente. É fazer com que cada momento seja eterno.

Já fragilizado com os próprios problemas, o rapaz se emociona com a história do senhor. Enxuga as lágrimas, se levanta e dá sinal. Diz que sentia muito, mas que precisava descer. O velho se desculpa pelo que, segundo ele, havia sido uma necessidade de conversar com um amigo. Eles se despedem.

O rapaz desce do ônibus e, ainda abalado, começa a fazer uma análise entre a sua vida e a história que havia acabado de ouvir. Tentando entender qual papel costumava desempenhar em suas relações, chega à conclusão de que era como a mulher morta. E que, talvez, assim como ele, muitas vezes ela tenha se questionado onde havia errado ou o que faltava em si para conseguir ver o amor no outro. Seria o seu fim morrer como Maria ou um dia encontraria reciprocidade?

Ainda emocionado, absorto, seus pensamentos são interrompidos quando esbarra em um homem que ia em direção às escadas do metrô. Se desculpa e continua andando, com a certeza de ser como Maria e uma dúvida: algum dia encontraria uma pessoa disposta a morrer um pouco por ele a cada dia? A camisa xadrez deixa de incomodá-lo, seus pensamentos não focam mais em entender onde havia errado, mas no que ele deveria fazer a partir dali para acertar. Embora até então se portasse como a mulher morta, ele estava vivo. Isso era o que precisava para não ter o mesmo destino que ela.

Guilherme Givisiez

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