Laranjeira

Meses antes daquele dia, fazia calor. Chegou do trabalho, tomou banho, vestiu uma roupa para dormir e foi para a sala. Ligou a TV, colocou o controle no rack e se dirigiu ao quarto para pegar o ventilador. Posicionou o eletrodoméstico próximo do sofá, onde se assentaria para assistir algo. Com fome, antes de se assentar para relaxar, foi até a cozinha e procurou algo para comer. Nada estava pronto. Pegou na fruteira duas laranjas e uma faca na gaveta do armário. Voltou para a sala.

Assentou-se no sofá e começou a descascar a primeira laranja. Pensou que deveria ter pegado um prato para evitar a bagunça, mas não voltou à cozinha. A preguiça era maior que o trabalho de recolher tudo depois. Conseguiu tirar toda a casca da laranja de uma vez só e a colocou sobre a mesinha que ficava ao lado do sofá. Cortou a laranja em dois pedaços, um menor e outro maior. Deixou a faca suja do lado da casca e começou a chupar o seu lanche assentado em frente a TV.

Degustou todo o líquido do pedaço menor e colocou o bagaço sobre mesinha. Depois chupou o maior, cheio de sementes. O prato fez falta. Sujou a camiseta e o short com o líquido que escorria de sua boca, mesmo sabendo que depois teria que os lavar. Separou as sementes na boca e, ao invés de colocá-las na mesinha, as afundou na terra de um pequeno vaso de planta que tinha sobre ela. Limpou os dedos de terra também na camiseta. Já estava suja mesmo… Terminou a primeira laranja e não descascou a segunda, a deixou na mesinha. Depois se deitou no sofá.

Na TV era exibido um programa que ele não gostava e o ventilador, além de não rotacionar, estava ventilando na direção de seus pés. Mas a preguiça de levantar para pegar o controle remoto sobre o rack e apertar o botão do ventilador, ambos a menos de dois metros de distância dele, eram maiores que o calor e a falta de interesse pela programação.

Ainda sentia fome, mas fazer janta estava fora de cogitação. Descascar a outra laranja também. Depois um tempo deitado, assistindo a um programa que não gostava, com fome e calor, decidiu tentar dormir. Era assim quase sempre. Chegava cansado do trabalho e fazia o mínimo. Organizava tudo aos finais de semana, quando tinha mais disposição.

Levantou do sofá, pegou o controle remoto, desligou a TV e levou o ventilador para o quarto, apertando o botão que o fazia rotacionar. Voltou e pegou a laranja inteira, os restos da que tinha chupado e a faca. Levou tudo para a pia da cozinha, que já acumulava algumas louças sujas. Apagou as luzes, deitou na cama com fome e dormiu. Pelo menos o ventilador estava rotacionando.

Três semanas depois de afundar as sementes daquela laranja no vaso sobre a mesinha, sentado no sofá com o controle ao seu lado e o ventilador rotacionando, assistia um programa que gostava. No intervalo, percebeu que uma das sementes havia germinado. Era inacreditável! Demorava a regar as suas próprias plantas e uma semente de laranja resolveu nascer ali. Coitada… depender dele era uma sentença de morte.

Mas mesmo sem muita expectativa no desenvolvimento da muda que despontava, a deixou lá. Regava só quando se lembrava e mesmo assim ela continuava crescendo aos poucos. Tempos depois, vendo a força de vontade dela em crescer, admirou-se.

Saiu do trabalho no outro dia, passou em uma floricultura e comprou um saco de terra e um vaso para ela. Colocou na TV um vídeo sobre jardinagem e, deitado sobre o sofá, assistiu como poderia transferir a muda de laranja para outro lugar. Fez naquela mesma noite, sem fé de que ela iria sobreviver no outro dia. Por isso mesmo havia comprado o vaso mais barato.

Por mais que não acreditasse naquela muda, continuou a regando quando se lembrava e a colocou num lugar estratégico, onde ela recebia mais luz solar. Dias depois, para a sua surpresa, a muda havia crescido mais. Ela sobreviveu à mudança de vaso e ao despreparo dele.

Agora sim, vendo a dedicação e a força de vontade daquela muda para sobreviver, talvez maior que a dele, voltou naquela mesma floricultura e comprou o maior e mais bonito vaso que viu. O preço era insignificante perto da força de uma planta que estava, apesar das adversidades, mostrando o seu valor diariamente.

Chega em casa, já íntimo dela, segurando um vaso enorme, caro e bonito. Nas sacolas, terra suficiente para preenchê-lo. Estava se sentindo o melhor dono que aquela laranjeira poderia ter.

Começa a fazer como da primeira vez que a mudou de vaso, de acordo com o vídeo de jardinagem que havia assistido. Mas ao tirá-la do vaso, percebeu que dessa vez tinha raízes demais. Era como se ela gritasse por um lugar que proporcionasse mais espaço para que elas pudessem ser livres. Nem tinha passado tanto tempo daquele fatídico dia em que ele afundou as sementes, mas o crescimento externo que já era notável se tornou pequeno se comparado ao interno. Pensou pela primeira vez sobre a responsabilidade de cuidar de um pé de laranja em seu pequeno apartamento.

Agachado na sala, com um vaso enorme do lado, sacos de terra do outro e a muda de laranja cheia de raízes à sua frente, coça a cabeça. Elas se contentariam com o vaso novo? Mesmo que ele conseguisse cuidar, a laranjeira cresceria dentro daquele apartamento tão pequeno? Ela vai morrer, conclui.

Por mais que houvesse comprado o maior vaso e mais bonito da floricultura, as raízes daquela planta, tão destemida e com vontade de crescer, iriam quebrá-lo. Por mais que chovesse lá fora e ele não quisesse dar adeus à sua tão amada laranjeira, naquela tarde de clima ameno, quase frio, diferente do dia em que ele plantou as sementes sem intenção, chovia. Ainda assim, entendeu que o melhor seria plantar o pé de laranja onde ele realmente pudesse crescer e dar frutos. A muda não precisava de um vaso bonito, precisava de espaço.

Contudo, por mais que aquela planta estivesse ali há pouco tempo, era uma decisão difícil vê-la crescer lá fora enquanto o grande e bonito vaso ficava vazio na sala do apartamento. Mas, independentemente do que seria melhor para ele, precisava pensar na planta. Por mais que ele tivesse desenvolvido amor por ela, não era sobre o que ele sentia, e sim sobre o que ela precisava. Cedo ou tarde a laranjeira morreria ali.

Pega uma sacola, uma faca (a mesma que havia usado para descascar a laranja que originou aquela muda) e desce do prédio com o pé de laranja cheio de raízes. Mesmo apegado a ela, precisava deixá-la viver a sua própria vida.

Estava triste por levar a planta para um lugar onde qualquer pessoa poderia pisar nela, roubá-la ou matá-la. Contudo, feliz de dar a liberdade necessária para que ela pudesse crescer, dar flores, frutos e servir de lar para que os pássaros fizessem seus ninhos. Por mais que o doesse, era melhor ver a laranjeira crescer longe a vê-la morrer perto.

Debaixo da chuva fina que caía, com os últimos minutos de claridade do dia, ele cavou um buraco com a sua faca no canteiro em frente ao prédio e lá afundou as raízes da planta. João, com as mãos sujas de barro, se despediu. Por mais que parecesse que ela precisava de um dono, o que a laranjeira realmente precisava era de espaço. Liberdade. Agora ela tinha.

Guilherme Givisiez

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