Aguardava ansioso a energia voltar. Depois de um estrondo, a rua inteira havia ficado no escuro. Não chovia forte, mas o céu estava muito carregado. Com certeza não demoraria muito para cair uma tempestade. Depois de alguns minutos, a luz da sala se acende. Lá fora, gritos de pessoas comemorando. Era sempre assim. Pega o papel para reler a carta que havia escrito. Queria ter certeza de que estava tudo ali antes de entregá-la. Em voz alta, ele lê mais uma vez:
“Durante muito tempo eu acentuei todas as qualidades que eu via em você e coloquei todos os meus defeitos em evidência. Te endeusei inconscientemente, acreditando que isso pudesse me fazer aceitar o fato de você ter ido embora. Mas nada disso foi suficiente para justificar a sua partida e, assim, a sua ausência continuou doendo em mim.
Mesmo insistindo em multiplicar as suas qualidades e subtrair as minhas, eu não consegui entender a sua escolha. Com isso, além da dor da sua ausência, me doía também o fato do meu amor não ter sido suficiente para as suas aspirações e de me sentir uma pessoa tão inferior a você. Empenhei-me, então, em tentar te odiar… Comecei a me lembrar de todas as vezes que você não pôde ir a um de nossos encontros; todas as mensagens que eu te enviei e você demorou a responder; das vezes que eu pegava a sua mão com intensidade, mas não sentia a sua força; e, principalmente, das duas vezes que eu tive coragem de dizer que te amava e você me respondeu, sorrindo: “bobo”.
Comecei a tentar acreditar que você, assim como todas as outras pessoas que passaram pela minha vida, era um completo idiota. Cultivei mentiras a seu respeito e fiz com que todos os meus amigos próximos te odiassem. Contei todos os nossos desafetos, aumentando as suas falhas e omitindo as minhas; dramatizei os dias em que você chegou cansado do trabalho e preferiu dormir a sair comigo; e inventei mais mentiras… Eu não me orgulho disso, mas, sinceramente, não me arrependo. Foi necessário para que eu conseguisse superar as projeções que eu havia construído sobre você e acabaram desmoronando sobre mim.
Hoje eu entendo… a culpa nunca foi sua, mas também não era minha. Não podemos carregar a culpa por amarmos alguém que não nos ama e não podemos obrigar alguém a nos amar. O amor tem que ser uma necessidade mútua, não uma obrigação. Todos precisamos entender isso. O grande problema é que temos a infeliz mania de desejar que as coisas sejam exatamente como queremos. Às vezes, por amarmos demais alguém, queremos obrigar essa pessoa a nos amar também; tentamos nos colocar a todo o custo dentro do coração dela; mas na tentativa vã de agradar ao outro, nos moldamos tanto que acabamos nos esquecendo de quem somos de verdade. Eu tentei tanto me colocar na sua vida, que acabei me distanciando da minha.
Hoje eu consigo enxergar as coisas como elas realmente são e sei que você não é tão maravilhoso quanto eu achava enquanto estive apaixonado, nem o babaca que eu apresentei para os meus amigos enquanto estive chateado. Somos humanos: às vezes nos apaixonamos por quem não gosta da gente e às vezes não conseguimos amar quem nos ama. Mas precisamos entender que ninguém é obrigado a nos amar e, principalmente, aprender a hora de pararmos de nos sujeitar a tudo na esperança de sermos amados. Não adianta tentar arrombar as portas do coração de alguém que sequer fez questão de abrir as janelas…
Naquele momento eu não entendi os seus motivos para ir embora e perdi tempo demais tentando entender o óbvio: você não me amava. Perdoa-me por todos os nomes que eu te xinguei em pensamento e todas as mentiras que eu contei a seu respeito. Não há vilões nem mocinhos nessa história, apenas personagens que nunca teriam um final feliz. Você percebeu isso antes de mim e foi sincero com os seus sentimentos e com os meus.
Talvez eu ainda te ame, mas, além do que eu sinto por você, eu respeito o que você sente por mim. Não podemos escolher por quem nos apaixonamos, mas podemos escolher para quem vamos entregar o nosso melhor. Não ter amor por mim é um direito seu, mas me amar é uma obrigação minha! E é isso o que eu fiz para superar o seu adeus…
Que Deus nos perdoe pelos corações que machucamos e nos dê forças para superar quando o nosso é ferido. O (des)amor é como uma roleta-russa: a qualquer momento alguém pode ser atingido.”
Ao terminar de ler pela última vez, pega a caneta e escreve uma última frase:
“Te desejo boa sorte!”
Estava tudo ali. Escrito de forma clara, assim como deveria ser.
Dobrou o papel duas vezes. Até pensou em improvisar um envelope, mas não achou necessário. Colocou a carta dobrada dentro da caixa onde estavam todos os discos de vinil que o ex havia deixado lá. Até estranhou quando um amigo em comum disse que Mateus, o ex-namorado, tinha interesse em pegar os discos. Já tinha passado tanto tempo desde a última mensagem trocada, antes de se bloquearem nas redes sociais, que nem se lembrava mais deles. A princípio pensou em não devolver os discos, mas, além de ser honesto, aquela seria a oportunidade perfeita para dizer tudo o que ainda carregava no peito.
Por sugestão da psicóloga, que o atendia de forma online há mais de um ano, iria escrever no papel tudo o que havia ficado da relação e do término. A proposta era tirar tudo aquilo do peito e, como já não tinha mais contato com Mateus, queimar o papel. Era uma forma de superar o que deveria ter ficado para trás e colocar um ponto final a um adeus que não havia sido totalmente entregue. Mas, como o ex havia combinado de pegar os discos na portaria do prédio, queimar a carta não seria tão efetivo quanto entregá-la ao destinatário. Aquela seria a melhor forma de encerrar o ciclo com honestidade. Na verdade, seria a melhor forma para que ele conseguisse se perdoar.
Desceu com a caixa, pesada pela quantidade de discos que havia ficado, pelo elevador de serviço e a entregou a José, porteiro do turno da noite. Passou o nome do ex e disse a hora que ele buscaria tudo na portaria.
Enquanto conversava sobre discos de vinil com José, que relembrava a sua juventude, uma chuva torrencial começa a cair. Despede-se do porteiro dizendo que as janelas do apartamento tinham ficado abertas e precisaria subir rápido para fechá-las. Por sorte o elevador social estava no térreo.
Abre a porta do apartamento, fecha as janelas e se sente leve. Não por ter chegado a tempo de evitar que a chuva molhasse os seus móveis ou por ter deixado aquela caixa pesada lá embaixo, mas porque transferir os sentimentos que ainda carregava no peito para aquela carta havia tirado um peso grande demais de suas costas. Graças à sua coragem, um papel e uma caneta, conseguiu, por fim, se sentir em paz.
Não via a hora de dividir tudo aquilo com a psicóloga.
Guilherme Givisiez