Geladeira azul claro

Rafaela chega ao prédio mais de 1h após o horário habitual. Um acidente de trânsito havia congestionado as vias da cidade antes que ela saísse da faculdade, seu último compromisso do dia. Chegou cansada no apartamento, trancou a porta, colocou a chave e a bolsa sobre a estante. Assentou-se sobre o sofá e tirou os sapatos, deixando-os ali mesmo. Ligou a televisão e, antes de ver qual programa estava sendo transmitido, foi para a cozinha preparar a sua última refeição do dia: uma lasanha de micro-ondas. Ao se aproximar da geladeira, percebe que há uma poça de água no chão. Ao abri-la, a estudante percebe que, pela terceira vez em menos de um ano, a geladeira havia estragado.

_ Droga! De novo… _ Diz Rafaela, pegando o pano de chão.

Depois de secar o piso, a estudante pega a lasanha e, aguardando os treze minutos até que o jantar fique pronto, resolve fazer o que deveria ter feito há semanas: tirar da geladeira o que não servia mais. Enquanto depositava numa sacola plástica os restos de verduras estragadas, sachês de ketchup e maionese vencidos e embalagens com restos de lasanha de micro-ondas, a jovem se lembra da geladeira azul claro que fazia parte da decoração da casa de sua avó. Isabel, a avó, sempre se recusou a comprar uma nova. Inclusive, um dos últimos diálogos que Rafaela se lembra de ter tido com ela, que havia falecido há pouco mais de um ano, era sobre isso:

_ Essa geladeira tem muitos anos, não é, vó? _ Perguntou Rafaela.

_ Muitos anos… _ Disse Isabel, se aproximando do eletrodoméstico e, carinhosamente, passando a mão sobre ele. _ Essa geladeira é mais velha do que você, querida. _ Completou a senhora.

_ Então já passou da hora de trocá-la, não? _ Questionou a neta.

_ Não, eu nunca vou trocar. Não se fazem mais geladeiras como antigamente. A maioria das geladeiras estão estragando cada vez mais rápido. Às vezes, ainda dentro da garantia, é necessário chamar um técnico e trocar as peças. As lojas já vendem os seus produtos oferecendo garantia estendida, pois os consumidores nunca sabem se a geladeira vai dar defeito depois de um mês, dois meses ou um ano. Porém sabem que a qualquer momento vai parar de funcionar, estragando os alimentos e fazendo todo o gelo virar água. _ Respondeu a avó.

A geladeira de Isabel já havia sido reparada algumas vezes, mas nunca parado de funcionar. Lindomar, o marido, dono de um fusca azul, quase do mesmo tom da geladeira, se encarregava de trocar o gás quando a potência diminuía e de comprar novas borrachas para a porta quando ela não fechava totalmente. Mas somente esses reparos haviam sido feitos por ele, que morreu um ano antes de Isabel. Aquela geladeira, apesar de mais de duas décadas servindo à família, funcionou normalmente até ser vendida a um ferro-velho.

Como aquela era a terceira vez que a geladeira de Rafaela estragava, a vontade da moça era – assim como fazia com os seus relacionamentos, terminando sempre que apareciam as dificuldades e incompatibilidades – comprar outra e dar adeus aos problemas constantes que tinha com o eletrodoméstico. Mas sua situação financeira não a permitia fazer mais um compromisso com o pequeno salário que recebia no estágio e, além disso, o dinheiro depositado pelos pais era a conta de pagar as despesas com o apartamento e a faculdade de direito. Então, diferentemente de como agia com os relacionamentos, a solução com a geladeira seria mesmo chamar um técnico e consertá-la novamente.

Por observação e influência de Isabel, Rafaela sabia que as coisas estavam sendo feitas para acabar. Assim foi com o seu celular, com os relacionamentos e agora com a geladeira.

_ Bem fez a vó em continuar com aquela geladeira azul enquanto pôde! _ Diz Rafaela em voz alta, lembrando-se com nostalgia do tempo em que brincava descalça pela casa de Isabel e sentia o cheiro de bolo nas tardes de chuva, como a que fez naquele dia.

O micro-ondas apita. Cansada do dia agitado que teve, se dividindo entre o estágio, os trabalhos da faculdade e as aulas, Rafaela coloca um pedaço da lasanha em um prato e, ainda se lembrando da geladeira e de sua avó, vai jantar. Entre uma garfada e outra, observando as gotas de gelo derretido que escorriam, a jovem faz uma analogia entre a sua vida amorosa e a velha geladeira de sua avó.

Jantando na cozinha, ouvindo apenas o som baixo, oriundo da televisão ligada na sala, e o barulho das gotas que caiam sobre a poça d’água, Rafaela filosofa mentalmente e visualiza o amor como uma enorme geladeira azul claro. Em sua nova filosofia, para que os amores permanecessem sólidos e, consequentemente, mais resistentes e duradouros, essa geladeira precisaria estar funcionando perfeitamente.

Chegou à conclusão de que, no tempo em que Isabel e Lindomar – que dividiram as suas tristezas e alegrias durante 57 anos – estavam juntos, essa geladeira estava funcionando a todo o vapor e o amor era sólido como uma pedra de gelo. Mas, lembrando-se de suas últimas experiências amorosas, a moça tinha a certeza de que, assim como a sua geladeira precisava ir para o conserto, algo também precisava ser mudado nela. A água que escorria do congelador e encharcava o chão da cozinha era como as suas relações: líquidas.

Mas, diferentemente dos que acontecia com os seus eletrodomésticos, na vida o único técnico capaz de aumentar a durabilidade de seus amores era ela mesma. Assim como uma geladeira, nenhum relacionamento é perfeito. É fato que muitas vezes Isabel teve problemas com Lindomar e, provavelmente, já foram dormir de costas um para o outro uma, duas, várias vezes. Mas eles, diferentemente de como Rafaela tratava os seus relacionamentos, se viam como o amor de suas vidas e não como um objeto que precisava ser trocado ao ser arranhado ou substituído quando surgiam modelos mais novos.

Tentando entender a diferença entre o relacionamento de seus avós e os seus, concluiu que ao longo do tempo o que mudou não foi o amor, mas sim a forma fugaz como ela e a maioria das pessoas se acostumaram a vivê-lo.

Entretanto, fazer durar não é sobre se sujeitar a tudo em relações tempestuosas ou permanecer aceitando migalhas. Relacionamentos abusivos têm que ter a durabilidade de um piscar de olhos, não de um eletrodoméstico de baixa qualidade. Cabia a ela começar a secar os seus amores líquidos e consertar, além da sua geladeira branca, que molhava o chão da cozinha, a geladeira azul claro que ficava em seu coração. Era necessário solidificar os sentimentos que escorriam de seu peito para que ela parasse de escorregar em uma realidade de desamor.

Termina de jantar, coloca a embalagem com resto de lasanha no saco de lixo, lava o garfo e o prato. Tira tudo o que estava no congelador e, enquanto levava para a pia, escorrega e vê tudo escorregar de suas mãos, fazendo barulho e ainda mais bagunça. Por dentro também estava tudo daquele jeito.   

Rafaela não queria mais viver a liquidez e os transtornos que a sua vida e a geladeira branca proporcionavam, mas sim a solidez que a antiga geladeira azul claro de seus avós representava. Enquanto juntava o que tinha caído no chão, promete a si mesma economizar dinheiro e comprar uma geladeira nova. Queria ter em seu apartamento a azul claro que, durante anos, serviu à Isabel e Lindomar.

Mas aquela já não existia mais…

Guilherme Givisiez

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